"OVERAL"  Luciana Brito Galeria  2013


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No universo do skate, com o qual Tiago Tebet esteve sempre envolvido sem se profissionalizar, overall é uma modalidade livre. A pessoa anda como quer, onde quiser, aproveita espaços existentes, arrisca-se em outros, inventa manobras. Pode buscar precisão técnica, até mesmo um estilo, mas não vem daí o sentido da sua prática. Essa imagem de deslocamento e liberdade contrasta em tudo com o que se vê no vídeo que Tiago apresenta em sua exposição: uma roda de motocicleta girando sem sair do lugar, de maneira que o atrito com o chão queima o pneu até estourá-lo. Mas o que esse desperdício de energia e imobilidade autodestrutiva tem a dizer sobre as pinturas que ele expõe simultaneamente? A cortina de fumaça que a câmera fixa capta, o som perturbador do motor e a borracha que se esfacela, enfim, o frenesi do experimento pode ser uma manobra em uma galeria de arte para desviar a atenção e permitir escapar de um procedimento que, na verdade, inviabilizaria a pintura que realizou: aquele em que ocorre uma aproximação unilateral em relação ao suporte plano da tela – da mão, do pincel e da tinta em sua ponta –, numa demonstração de autocontrole e consciência do meio.
No mais, a partir dessas primeiras impressões, não é demais supor que essa feição moderna que marca a “volta à pintura” de uma geração que o antecede na cena artística paulistana possa lhe parecer motivada pela mesma necessidade de especialização que fez o skate estabelecer regras definidas que permitissem um julgamento objetivo de desempenhos, alçando-o à categoria de esporte de competição e regulamentando a profissionalização de seus praticantes. A pintura de Tiago tende a uma homogeneidade no tratamento do óleo sobre tela, como se já partisse do allover norte-americano, justamente um limite radical da parábola moderna, nos anos 1950, para seguir como se deslizasse, deslocando-se lateralmente pela tela. Seu “estilo” combina ainda duas correntes divergentes na década de 1970: o fotorrealismo e a minimal art. De acordo com Gregory Battcock, em seu prefácio para Super Realism: A Critical Anthology (1975), o retorno do realismo significou, naquele momento, que “o novo conteúdo da arte era nada menos que a reintrodução do assunto em si.” No caso de Tiago, ele é um recurso para dinamizar um processo de reconhecimento e não uma razão de ser. Permite-lhe abordar procedimentos pictóricos diversos, vistos a uma distância mais objetiva que crítica. Ou seja, mais de quarenta anos depois do apontamento de Battcock, esse “assunto em si” pode ser a própria variedade de movimentos pictóricos e uma aproximação de contextos artísticos dominantes com a cultura popular de uma periferia cultural.

Nisso, esses seus trabalhos dialogam com poéticas como a de Mônica Nador e outros artistas da geração 80. São trajetórias que conseguiram alternativas para a tendência à academizicização da pintura brasileiraNo universo do skate, com o qual Tiago Tebet esteve sempre envolvido sem se profissionalizar, overall é uma modalidade livre. A pessoa anda como quer, onde quiser, aproveita espaços existentes, arrisca-se em outros, inventa manobras. Pode buscar precisão técnica, até mesmo um estilo, mas não vem daí o sentido da sua prática. Essa imagem de deslocamento e liberdade contrasta em tudo com o que se vê no vídeo que Tiago apresenta em sua exposição: uma roda de motocicleta girando sem sair do lugar, de maneira que o atrito com o chão queima o pneu até estourá-lo. Mas o que esse desperdício de energia e imobilidade autodestrutiva tem a dizer sobre as pinturas que ele expõe simultaneamente? A cortina de fumaça que a câmera fixa capta, o som perturbador do motor e a borracha que se esfacela, enfim, o frenesi do experimento pode ser uma manobra em uma galeria de arte para desviar a atenção e permitir escapar de um procedimento que, na verdade, inviabilizaria a pintura que realizou: aquele em que ocorre uma aproximação unilateral em relação ao suporte plano da tela – da mão, do pincel e da tinta em sua ponta –, numa demonstração de autocontrole e consciência do meio. No mais, a partir dessas primeiras impressões, não é demais supor que essa feição moderna que marca a “volta à pintura” de uma geração que o antecede na cena artística paulistana possa lhe parecer motivada e contornaram a desconfiança de segmentos da crítica quanto à vertente mais experimental dos anos 1960 e 70, que atravessou sem pudores limites tradicionais impostos à arte contemporânea de então.

Uma boa entrada para a maneira como Tiago assimila essas questões são dois monocromos, um preto e outro branco. No primeiro, o revestimento é tão uniforme e bem acabado que brilha e cria um espelhamento natural, trazendo o ambiente externo para o interior do quadro. Isso é emoldurado internamente por uma faixa degradê regular que lembra a técnica do papel marmorizado utilizada na encadernação artesanal de livros, em que as gotas de tinta se espraiam no contato com a água e são fixadas assim no papel. No quadro, tem-se a impressão de que não são as cores e formas que se sedimentam no plano, mas este último que emerge e destaca o que estava à deriva na superfície líquida. No outro monocromo, camadas brancas também regulares se sobrepõem de forma suave.
A transparência que ele consegue com diluições precisas do óleo neutraliza a opacidade característica de uma pintura ensimesmada que expõe sua materialidade como prova de sua consistência formal. Cria-se, assim, uma profundidade ambígua que alterna e integra medium e evidência do suporte como parte de um repertório corrente em nosso imaginário da pintura abstrata.  

Algumas das telas são um pouco mais densas. A que presta homenagem às paridades entre o bordado em tecido e a trama geométrica construída pela disposição de tinta menos diluída tende, ao mesmo tempo, a se desfragmentar, como que digitalmente, numa lembrança de um videogame antigo. Já em outra, a massa de tinta é acondicionada em um retângulo. Ele se equilibra simetricamente numa tensão relativa em relação à posição de outros retângulos contidos naquele mesmo espaço exíguo. Exalam-se dificuldades de certa tradição construtiva, mas constata-se logo que tudo é feito com o mesmo rigor dos arabescos que ornam portas de banheiros de rodoviárias e que também disputam espaços estrategicamente em outras de suas telas. No conjunto exposto, o trabalho mais característico talvez seja esse em que o campo é preenchido por um revestimento branco em uma configuração radial. No centro, está um pequeno quadro em que figuram três palmeiras escuras contra um pôr do sol estilizado – ou seria amanhecer? De dentro para fora, a sugestão de uma fruição narrativa que nós só podemos contemplar. Das bordas para dentro, parando para notar a moldura pintada como madeira enquadrando a paisagem em miniatura, percebemos que Tiago está bem avisado dos impasses autorreferentes da linguagem que se propõe utilizar e que os supera com prudência. Aliás, seu cuidado com molduras ultrapassa, de fato, os domínios da tela, já que é ele quem as produz artesanalmente com um sistema de encaixe em madeira que inventou e do qual se orgulha com razão – especialmente quando o que poderia ser só um detalhe assumiu tal importância no âmbito comercial, que o moldureiro se tornou um protagonista no circuito das artes.

Para todos os efeitos, as obras mencionadas aqui, sem exceção, dispensam um reconhecimento compulsório garantido pela autonomia do objeto artístico. De fato, hoje, o indivíduo entra em um museu, vê duas naturezas-mortas do mesmo artista – Morandi, digamos –, do mesmo ano. Dada a semelhança das obras e a cor bege uniforme do painel onde estão penduradas, emolduradas e identificadas com etiquetas e textos explicativos que parecem idênticos a uma distância média, ele pode perfeitamente ver aquilo como um único display no espaço. E o fato de eventualmente existirem instalações na instituição que está visitando lhe dá a opção de não querer se fixar em uma obra, fazendo toda sua atenção convergir para uma intimidade cuja quietude e absoluto exigem o esquecimento de que ele mesmo ainda está vivo naquele lugar. Afinal, o que nos impede hoje de escolher seguir outras direções como a indicada na “última pintura” de Duchamp, Tu m’ (1918)? Diante dela, o público não precisa se abstrair de sua presença no local. Ele não vê o trabalho frontalmente, pois está acima de sua cabeça, e lida com estímulos e constatações diversas: a pintura de ofício feita não pelo artista, mas por um artesão contratado, o trompe-l’oeil no rasgo ilusório no qual está fincado um objeto readymade, enfim, um realismo explícito que dessacralizou o espaço expositivo introduzindo nele o descaminho do pop, uma coleção de fatos mais conhecidos e todo o tipo de ruído externo que se tentava isolar.

Na mesma linha, o despudor de Tiago, ao incluir objetos, rótulos, capas de discos na exposição, não é discursivo. Está mais para a afirmação de um gosto coletivo, despreocupada com conexões subliminares e comprometida com uma atenção ao óbvio, algo desperto. Assim como a disciplina das aquarelas apresentadas em sala à parte que reforça a predisposição de alguém que aposta no exercício cotidiano para, com esse condicionamento conquistado, fazer suas escolhas com serenidade. É ele quem afirma que, por trás da geometria, da regularidade, dos encontros aparentemente previsíveis nas sobreposições de faixas – uma certa caretice desses trabalhos em papel –, há um deixar acontecer das cores, como se a folha fosse um sampler sobre o qual melodias fluem desimpedidas.

A exemplo de Malcolm Morley, que pinta desastres, mas nunca desastradamente, Tiago é atento aos encaixes, com um olhar prático que respeita o funcionamento daquilo com o que se comprometeu, sem mais, sem esperar uma transcendência. Em praticamente tudo o que apresenta, transparece um desejo de que cada peça possa ser reinserida no cotidiano sem dramas ou preciosismos, e só então ser percebida e valorizada com justa atenção. Do geral para o particular e vice-versa, ele parte daí para transitar pelo terreno baldio, olhar a palmeira através de bambus soltos; os muros pichados sem grafismos, a F-1 em Interlagos e todas as oficinas mecânicas da zona sul. Gasolina e alguma maquiagem. A madeira pintada com esmero. Robert Ryman e Antonio Petikov vistos em uma mesma sala, na mesma curadoria; algumas soluções mais clínicas dos anos 90. A op-art em revistas; um concretismo rastafári, o desgaste do som dos vinis e cassetes. As fachadas dos edifícios modernistas de Higienópolis e muitas grades, de todos os tipos, em todos os bairros. O arabesco fugaz das caçambas de caminhão. Aros, pedras, raios e tigres albinos escancarados num díptico. Ao final do percurso, por trás da máquina enquadrada no vídeo, e também pela ausência da figura humana na exposição, começa a se delinear um sujeito agregador que quer se aproximar por uma cumplicidade diante das coisas planas que trouxe e que não renegam um entusiasmo por aquilo que consegue permanecer desautorizado pelo maior tempo possível. Tudo indica que ele vai seguir adiante.



Rafael Vogt Maia Rosa
Ensaísta e dramaturgo. Mestre e doutor em teoria literária e literatura comparada pela USP, atualmente, é pesquisador convidado na Yale University.